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Reforma necessária, mas não essa
Ricardo Só de Castro (*)
Após as emoções do carnaval e desastrosas manifestações de Bolsonaro nas redes sociais, me dediquei a refletir sobre alguns aspectos que considero relevantes da proposta de emenda constitucional encaminhada pelo Executivo ao Congresso Nacional, e que modifica a seguridade social do país.
A proposta é abrangente e envolve os três pilares da proteção social constitucional: a previdência, a assistência e a saúde. Somente pelo tamanho, a proposta já se mostra assustadora. Mas não é só o tamanho que assusta. Também o conteúdo. Embora a elevação da idade mínima para recebimento de benefício (passa a ser de 62 mulheres / 65 homens) e a tabela progressiva de contribuição nos regimes previdenciários geral e próprios (quem ganha mais, paga mais) sejam mecanismos que possam representar a efetivação de justiça social, o conjunto da proposta é temerária porque penaliza os que mais necessitam da proteção do Estado.
Vejam, por exemplo, que pelo projeto há a extinção da Aposentadoria por Tempo de Contribuição, havendo três opções de regra de transição, penosas, para atuais segurados. A Aposentadoria por Idade, que hoje é concedida para quem tem pelo menos 15 anos de contribuição e 60 anos de idade se mulher ou 65 anos se homem, é estendida a todos, com elevação da idade da mulher para 62 anos (mantido 65 anos para homem), e aumento do tempo contributivo mínimo para 20 anos, atingindo o valor integral somente após 40 anos de contribuição.
Mas o mais perverso é o que está previsto para o Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago aos idosos e pessoas com deficiência, para o qual é quebrado o atual piso nacional do benefício, correspondente ao salário-mínimo. O projeto de emenda constitucional propõe a redução do BPC para R$ 400,00 a partir dos 60 anos de idade, com aumento gradativo até atingir um salário mínimo aos 70 anos. Alguém que está lendo este artigo ou elaborou esse projeto já passou um mês com apenas R$ 400,00?
Na aposentadoria rural, por sua vez, abre-se o perigoso precedente da extinção da discriminação positiva a favor da mulher que passará a observar idade mínima de 60 anos em isonomia ao homem, e tempo mínimo de contribuição de 20 anos. Antes, os requisitos para mulher eram de 55 anos de idade e 15 de contribuição.
Temos, ainda, embora com regras não muito claras, a introdução do regime de capitalização individual na previdência social, por enquanto facultativa. É seguro desde já afirmar, entretanto, que essa medida é desaconselhada para cobertura dos infortúnios sociais (morte e incapacidade) da grande parcela da população brasileira que possui renda mensal até 3 salários-mínimos e irregularidade de manutenção no emprego. Esse regime de capitalização depende de contribuições maiores e regulares para a acumulação de reserva suficiente para sustentar um benefício previdenciário de valor razoável e vitalício.
Por isso é mais adequado ser utilizado de forma complementar ao regime básico, tal como existe no Brasil, previsto no art. 202 da Constituição Federal, destinado principalmente aquele que recebe salário acima do teto do benefício pago pelo INSS (R$ 5.839,45) e deseja manter esse nível de consumo na aposentadoria. E desse modo deveria permanecer, atendendo aos interesses da população que tem capacidade de individualmente formar sua poupança previdenciária complementar.
O Estado deve garantir proteção aos grupos vulneráveis (miseráveis, pobres, idosos e incapazes), a luz da solidariedade geracional e contributiva estabelecida na Constituição Federal, e não abandoná-los à própria sorte. Essa garantia é ônus de qualquer sociedade que almeje alcançar um dia o ‘Estado de bem-estar social’.
Essa reforma, por outro lado, sob o aspecto fiscal, representa (e é a justificativa do Governo), de acordo com o anúncio midiático do Executivo, uma economia aos cofres públicos de aproximadamente um trilhão de reais nos próximos dez anos.
Significa que será retirado do sistema de proteção social de um país recordista em desigualdade e de perspectivas tímidas em relação a criação de novos empregos, recursos cuja destinação estava prevista exatamente para minimizar as consequências dos infortúnios sociais e evitar a entrada do cidadão em estado de miserabilidade. O efeito disso é que os mais ricos ou remediados se apropriarão ainda mais da riqueza nacional, enquanto os mais pobres restarão mais distantes dos benefícios ou excluídos do sistema de proteção estatal.
Isso é o que teremos no futuro se a reforma da previdência for aprovada como está redigida a proposta. Uma população de desempregados beirando a criminalidade e de idosos miseráveis, ambos os grupos desatendidos pelas políticas públicas do Estado, governado pelo ex-capitão expulso do Exército, eleito pelos cidadãos de bem do Brasil. Ah, os militares não serão atingidos pela reforma. É. Como bem disse um perspicaz amigo, é a ‘reforma Regina Duarte’, lembrando de episódio que marcou a atriz no ano de 2002. A reforma do medo.
(*) Advogado do Escritório de Direito Social
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